#JuliettaIndica: Casa de vó, a simplicidade da comida afetiva

Ao levar o garfo à boca, o crítico gastronômico Anton Ego foi transportado para a sua infância. Lembrou de sua mãe, que cozinhava aquele mesmo prato. Um calor aconchegante tomou conta de si. O homem rabugento sorriu e devorou o restante da comida. Essa cena do filme Ratatouille, um desenho animado da Disney, demonstra como a gastronomia pode, para além de servir os clientes, evocar sentimentos. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, essas lembranças residem na comida por ser uma das formas de aprendizado que mais se mantém ao longo prazo, conservando preservando a nostalgia dos bons momentos.

Em Piracicaba, uma cidade no interior do estado de São Paulo, A Vendinha começa os seus trabalhos. A porta verde escuro e as paredes com tons de pêssego recebem a luz do dia. A música, a comida e o atendimento estão prontos para receber os clientes. “O restaurante é um espetáculo todo dia”, disse a proprietária do restaurante, Laila Radice, que trabalha com a comida afetiva.

Esse conceito sugere que a gastronomia pode suscitar sentimentos e memórias. São como gatilhos para a memória dos consumidores, que são confortados ao lembrarem de uma cena ou uma pessoa especial. Porém, não é possível compreender que elementos causam esses sentimentos. Cada cliente tem uma experiência diferente com um mesmo prato, que é capaz ou não de proporcionar afetividade e aconchego.

“Eu acho que essa é uma coisa inebriante da comida afetiva, porque é muito sensível a tudo e são questões intangíveis”, disse Laila. A chef afirma que a mão do cozinheiro também é um fator determinante na experiência. Uma receita tradicional da família, feita pela avó, pode ser cozinhada por outra pessoa que respeite o passo a passo e use os mesmos ingredientes. O resultado não será idêntico. São esses detalhes que fazem a diferença nas experiências gastronômicas.

Laila Radice nasceu em São Paulo e, desde pequena, já demonstrava interesse pela gastronomia. A chef afirma que gostava de comer “coisas diferentes” e de cozinhar com o seu pai, que foi um grande incentivador de sua carreira como cozinheira. Laila é Tecnóloga em Gastronomia e, após se formar, começou a trabalhar na metrópole paulistana. Dentre os seus empregos, construiu uma carreira na Cia Tradicional do Comércio, uma empresa gestora de restaurantes. Começou como cozinheira, depois se tornou subchefe e chefe de uma unidade.

Em seguida, passou pela gerência da Lanchonete da Cidade e foi transferida para a seção de bares e restaurantes da Cia. Laila, então, ficou responsável, simultaneamente, pelas marcas Astor, ICI Brasserie, Bráz Trattoria, Bar do Cofre e SUB. Ela desenvolvia novos itens para os múltiplos cardápios e mantinha o controle de qualidade entre as unidades de cada restaurante. A chef trabalhava, no mínimo, 12 horas por dia em seis dias na semana.

No meio de tantas responsabilidades, Laila parou de trabalhar. Estava grávida e passou pela licença maternidade. Nesse momento, repensou as suas prioridades: continuar com uma carga horária exaustante ou cuidar de sua filha? Ela escolheu a segunda opção. Saiu de São Paulo e mudou-se para Piracicaba com Danilo, seu marido.

Na cidade do interior, retomou os serviços gastronômicos aos poucos. O casal começou a vender pela internet as iguarias produzidas em casa. “A gente vendia pelo Instagram e pelo WhatsApp para amigos e conhecidos”, conta a profissional. Ainda faltava um lugar para estabelecer o próprio negócio, Laila e Danilo procuraram um espaço para recomeçar. Seu marido, como relatou a chef, foi um grande incentivador nesse processo: ele ajudou a tirar o projeto do papel e a escolher o nome do restaurante. Laila relatou que, ao encontrar o local da loja pela primeira vez, ficou encantada. “Quando eu vi essa casinha, eu me apaixonei, porque ela tem essa cara casa de vó. E aí foi assim que A Vendinha surgiu”.

Com a inauguração da loja em 2021, as vendas começaram a dar pequenos passos. A Vendinha dispunha apenas de um balcão, que os clientes retiravam bolos e tortas. A experiência gastronômica ainda estava incompleta: faltava um espaço para consumir no local. Dois anos depois, o espaço foi reformado e colocaram-se as mesas, satisfazendo o pedido dos frequentadores. O restaurante também montou um cardápio de café da tarde e almoço. Cada novidade era realizada com muita cautela. “O almoço começou com um cardápio super pequenininho, era um prato do dia só”, diz Laila. Hoje, A Vendinha proporciona almoço, café da tarde, café da manhã e retirada de tortas e bolos.

Com o desejo de ter o próprio restaurante, também vieram os desafios. Estabilizar um negócio sem grandes investimentos, não conhecer as pessoas da cidade em meio à pandemia de Covid-19 e possuir multifuncionalidades foram algumas das dificuldades enfrentadas. Na A Vendinha, além de ser chef, Laila é responsável pelas finanças, gestão de pessoas, marketing, estratégia de negócio, entre outros. “Então você vira um ‘polvinho’, sendo que eu só queria cozinhar”, relata a proprietária.

O restaurante, em seus três anos, já conquistou os consumidores. Marina Dias, uma cliente da A Vendinha, disse que o espaço proporciona a afetividade tanto pelo lugar quanto pelo atendimento. “É o café coado passado na hora, feito na nossa frente, a conversa boa da Laila, o acolhimento e aconchego da casa de um ente querido, sabe? A sensação de ser bem-vindo”. Quando questionada sobre seu prato favorito, Marina disse: “Nossa, que difícil!” e citou várias iguarias.

Outra freguesa fiel é Adriana, que conheceu A Vendinha ao ter provado um bolo de paçoca em um ateliê de cerâmica. Ela também não conseguiu citar um prato preferido e confessou: “Acho que já provei toda a vitrine da Vendinha”. Adriana afirma que viveu uma memória afetiva no restaurante ao provar um bolo de chocolate com calda de chocolate. “Minha mãe sempre fazia assim”, relembra a cliente.

Um dos pratos mais queridos do restaurante é o quibe. Laila disse não saber muito bem o porquê do sucesso, já que Piracicaba não teve uma grande migração de árabes. “Mas o quibe é assim, ele é o queridinho, ele é o xodó”. Mesmo que a produção aumente, o prato acaba sempre esgotado. Ambas as clientes citaram que o quibe é um dos seus preferidos no cardápio do almoço. Além de ser sucesso dentro da loja, o prato tem um valor especial para Laila por conta do seu pai, que gostava muito da comida árabe. “Meu pai tinha muito essa coisa com a comida árabe e a família comia muito”.

Laila disse que A Vendinha, por mais que continue crescendo e conquistando mais clientes, permanecerá do mesmo tamanho. A chef tem outras ambições, mas não pensa em colocá-las dentro da casa com “estilo de avó”. A estrutura do restaurante, uma casa antiga, traz mais aconchego para as pessoas e se torna fundamental na experiência afetiva com a comida. “A Vendinha está fadada a ser pequenininha, ser acolhedora e continuar desse jeito. Acho que isso faz toda a diferença no conceito”.

Escrito por: Luísa Tabchoury.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *